O que aconteceu no cenário religioso nas Ilhas Britânicas no século XVI é descrito, pela maioria dos livros de História da Igreja, como “A Reforma Inglesa”, assim como o Luteranismo foi a Reforma alemã e escandinava, ou o Calvinismo foi a Reforma suíça, holandesa e escocesa.
Na Inglaterra, um século e meio antes da Reforma (no século XIV) se deu o mais importante episódio da chamada “pré-reforma” com John Wycliffe. Seus discípulos, os “lollardos”, mesmo violentamente perseguidos, e na clandestinidade, mantiveram vivos esses ideais até o século XVI. As ideias luteranas e calvinistas eram amplamente debatidas entre o clero, as elites e as universidades, particularmente, Cambridge, cujo grande espaço foi a “Taverna do Cavalo Branco”.
Além dos fatores econômicos, políticos ou culturais, o cenário religioso estava pronto para uma reforma, que viriam “com Henrique, sem Henrique ou contra Henrique”. As convicções protestantes de um Cranmer, de um Latimer ou de um Ridler estão acima de qualquer suspeita. Foi na consciência do pensamento reformado que o Bispo Latimer gritou para o seu companheiro Ridler quando ambos estavam sendo queimados vivos em Oxford pelo governo católico romano da rainha Maria, a sanguinária: “Conforte-se, mestre Ridler, e seja homem; devemos encarar esse dia como sendo candelabros da Graça de Deus sobre a Inglaterra, e essa chama jamais será apagada”. Ninguém pode negar o caráter protestante do Livro de Oração Comum (LOC) e dos 39 Artigos de Religião.
O período que vai da Revolução Gloriosa (1688) até o surgimento do Movimento de Oxford, do anglo-catolicismo (1838) é conhecido como “O Consenso Protestante”, ou seja, a Igreja Inglesa se via como uma das Igrejas Nacionais decorrentes da Reforma, a despeito da sua história peculiar. Como foi sobejamente demonstrado em uma Tese de Doutorado no Canadá, Hooker era um sólido protestante, e o que veio a ser chamado de “via média” entre Roma e Genebra não era uma “via média” entre o catolicismo romano e o protestantismo, mas entre aquela igreja e o extremismo dos puritanos. Durante a fase do “Consenso Protestante” os puritanos e os mais católicos subsistiram como minoria nas bordas, não marcando uma hegemonia. É com o Movimento de Oxford e o anglo-catolicismo (quando um dos seus setores termina por se vincular à Igreja de Roma) que se vai de forma “soviética” (lembram-se de como a Enciclopédia Soviética era periodicamente reescrita, conforme o grupo dominante?) se tentar reescrever a história do Anglicanismo, negando ou minimizando os fatos históricos e o ideário, em tudo que o unisse à Reforma.
A questão não é apenas que os novos “padres” e suas “missas” enfatizassem uma Liturgia filo-romana, com o seu sacerdotalismo e sacramentalismo (com bolsões, inclusive, marianos), ou a teoria Roma-Constantinopla-Cantuária, com três pólos católicos, mas um reescrever “sovieticamente” a nossa história, que não corresponde à verdade, uma narrativa altamente ideológica. Quando a província norte-americana foi criada, no final do século XVIII, e se chamou Igreja Protestante Episcopal dos Estados Unidos da América, a palavra “Protestante” queria dizer exatamente o que ela sempre significou. Depois se procurou dizer que queria dizer simplesmente “não-romana”, para, finalmente, retirá-la do título oficial da Igreja. O reescrever “soviético” da História do Anglicanismo não se esgotou com os anglo-católicos de Oxford, mas veio a conhecer um segundo momento, com o movimento católico-liberal meio século depois.
Os católico-liberais mantêm a formalidade e a leitura histórica dos anglo-católicos, mas negam a sua confessionalidade, e passam a atacar a dimensão confessional ou doutrinária protestante do Anglicanismo histórico, enfatizando uma fraternidade mundial frouxa, unida por um vago passado, pelos ritos e pelos “elos de afeição”, se crendo em qualquer coisa em termos de Doutrina e de Ética. Essa é a “onda” mais forte nos nossos dias. Como bem se sabe, os pioneiros da missão anglicana no Brasil no final do século XIX, como Kinsolving (primeiro bispo) e Morris eram protestantes evangélicos. E essa foi a identidade da igreja estabelecida em nosso País por muito tempo.
O anglo-catolicismo chega no final da década de 1940 e o catolicismo liberal vinte anos depois, tornando-se hegemônico nos anos 1980, completando o seu domínio no presente século, reforçado pela presença de ex-membros da Igreja de Roma, que dela saíram por razões pessoais menores, e de ex-protestantes em crise, deslumbrados com uma forma que esconde a falta de conteúdo (mais anglo-romanos que anglo-católicos... e liberais). Como acontecia na extinta União Soviética essas revisões históricas ideológicas são falsificações por conveniência, como racionalização pragmática para os interessados.
Mas devem ser denunciadas como tal, em nome da verdade dos fatos. Mesmo que a anabatistização e a iconoclastia do protestantismo brasileiro nos veja com suspeita, por nossa catolicidade e por nossos símbolos, mesmo que a província anglicana brasileira adote hoje uma leitura histórica (e uma teologia) revisionista, a Diocese do Recife, herdeira de Cranmer e de Kinsolving, celebra, juntamente com os demais ramos protestantes brasileiros, o Mês da Reforma, reafirmando a autoridade das Sagradas Escrituras, a salvação pela Graça mediante a Fé em Cristo, e o sacerdócio universal dos crentes. Juntos, estaremos cantando, com convicção e alegria, no próximo 31 de Outubro: “Castelo Forte é o Nosso Deus!”.
Paripueira (AL), 09 de outubro de 2009.
Dionísio, Primeiro Bispo de Paris,
E seus colegas mártires, século III
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